6 de jul. de 2011

Pequeno conto inexistente

Eu poderia começar esta história com um “Era uma vez...”, porém, falo de uma história que nunca houve, porque sua protagonista sequer existiu, tendo ela sido, talvez, coadjuvante de sua própria história. A não-protagonista-mera-coadjuvante é Afásia. Mas ninguém quer Afásia. Nesta parábola Afásia vive um novo confronto: a inexistência. E a inexistência é a personagem central aqui.

Afasia deitara-se cedo, porque as olheiras lhe brotavam da face e seu corpo pesava, como se todo o lixo do mundo a houvesse atropelado. Não dormira na noite anterior, na verdade não dormia há uns três dias. Ela não dormia porque perdia-se todas as madrugadas no profundo silêncio do mundo e de si, em suas abstratas ambições, em sua poética rala e tosca, em seu viver de sonhos. Afásia aconchegara-se confortavelmente debaixo de suas cobertas e, como de costume, virou-se para o lado do relógio, como que a esperar que o tempo lhe trouxesse o sono naturalmente. Porém, aquilo não era natural, ela sabia que o sono não viria, porque quanto mais ela queria dormir, mas ela sofria, porque havia aquelas vozes que habitavam nela, que a remexiam e contorciam em seu leito. Aquele dia, no entanto, fora incomum, porque ao fixar seu olhar nos ponteiros do relógio, Afásia se deu conta de que perdera-se do tempo, ou melhor, perdera, de fato, o tempo. Não havia mais tique-taques, nem horas, nem minutos, nem os segundos e seus milésimos restaram. Era aquele o momento oportuno para livrar-se de tudo, para recompor-se, para recolher e colar seus cacos, seus trapos e sedas, suas chitas vagabundas, sua mediocridade. Afasia quedara-se silepsa, todos os seus esquemas para forjar discursos, inibir anseios, enterrar suas faltas, empoleiravam-se acima de si, como que esperando uma ordem para alçar vôo ao mundo real. Aquela era a chance de Afásia se explicar para o mundo, o tempo parado a sua frente, era o seu coringa para retornar à realidade. Porém, ela era cruel consigo, sabia que estar no mundo real não seria bom para as pessoas reais, que não mereciam conviver com alguém movido à pregos como Afásia, sem uma gota de sangue, sem uma gota de vida, sem um coração palpitante. Aquela era a chance de Afásia materializar-se, tornar-se gente de verdade, sorrir, cantar, aprender a lidar com o tempo. Já não era mais possível viver por trás das coxias, era preciso subir ao palco, fazer um número, arrancar aplausos da platéia efervescida. Mas Afásia não poderia. Ela não podia compreender o tempo, nem lidar com ele, porque para ela o tempo era o tique-taque do relógio, e sem o tique-taque, o tempo deixava de existir, como ela.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Minha foto
Viajante espacial da poética atemporal.

Visitantes