26 de dez. de 2010

Fantasia

Naufraguei num deserto de deuses, perdida entre duendes, à sombra de um baobá.

Ode ao nada

Estou tão perto de conhecer o nada como estive tão perto de conhecer o tudo, mas ele me passou para trás. E agora o nada vem a soar em meus ouvidos, odorizar minhas narinas, sacudir meus anseios e entoar palavras de minhas cordas vocais. Serei eu uma exaltadora do nada, neste mundo do tudo, onde todos se sentem como o todo e o exaltam, onde a correria diária eleva os seres ativos, que tudo fazem, onde mais e mais coisas inúteis são criadas para satisfazer desejos fúteis?

O nada é mais límpido e mais calmo. Ele clarifica o pensamento, permite novas suposições, glorifica as simplicidades. O nada é tão sereno quanto uma bolha, náufraga de seu todo, uma parte vazia e ao mesmo tempo completa do nada.

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6 de dez. de 2010

Do sentir miúdo

Não sou, confesso,
a que hoje morre de dor,
mas ela está sempre aqui,
adormecida, acho.

Por vezes esqueço qu'ela existe,
e passo.

29 de nov. de 2010

Poesia do Luto

Gente pobre morre tanto
Gente honesta, traficante
Morre homem da favela
e criança sem tutela.

Onde há vida há amor
E com a gente dos barracos
Só lhes mandam os carrascos
A enquadrar o seu suor,
Gotas de sangue, nó.

O negro que um dia embarcou
No navio da tormenta
Serviu, lutou, gritou
E ainda dele se alimentam.

Vejo caos e agonia
Boatos, mentiras, conspirações no ar.
Todos olham as imagens diárias
em suas TV`s imaginárias.
Limpam a gente rica da sujeira
Culpam o pobre: é marginal.

Farinha pouca, meu pirão primeiro.
Para os donos do poder,
Todo cuidado é pouco.
A merda é grande,
Mas o bolso deles também.
Enquanto o pobre pisa no lodo e morre,
Gente das posses encobre o lixo e dorme.

Até onde vai isso impune?
Num mundo de moços “bons”, bandidos “maus”,
Maniqueísmos, fantasias e jornais,
Escondem a verdadeira face humana:

Quem muito tem, nada quer dar
Ou seu lucro pôr a perder.
Quem pouco ou nada tem,
Carece de amparo e de justiça.
É pobre bandido,
Muleque pivete,
Garota da vida.

Uma minoria apossada gera os marginalismos
A classe média vai na onda.
Consomem a ilegalidade,
Tiram leite de criança
E ainda vêm fazer alarde
Vitimizando a própria “inocência”.

E para onde vai o criminoso?
Para as jaulas do poder.
Enquanto ouço dizer
“Tire os bons da favela, e jogue uma bomba lá”
Mais tenho certeza da pequenez humana,
Do quanto precisamos ser melhores e mais justos,
Antes que matemos uns aos outros
E degolemos nossos próprios filhos.

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22 de nov. de 2010

Açoite

Aquela criança, recém vinda ao mundo
sacolejava nos braços maternos.
Fruto de toda asquerosidade do mundo
ou de todo amor, não se sabe,
era o ser mais puro, indefeso a sorrir.

O seu rosto já marcado
pela cólera do porvir.
Seu regalo era um colo cansado
de quem mal pariu.

Nas entranhas, o gosto amargo das ruas,
o suor, molhado de sede.
a grande barriga, vazia de comida.

Tudo tão grandioso e tão feio
Tudo tão belo e tão sujo.
Por quanto de dinheiro se vende o medo?
Com quanto suor se compra a sobrevida?

O existir tão perto da morte e tão longe da vida.

--

19 de out. de 2010

Vida-vida

Precisa-se de mais vida nas vidas
de mais cor nas cores
de menos dor nas dores.

Precisa-se de mais lar nos lares
de menos fala nas falas
de mais agir nas práticas.

Para se acordar cedo nos dias de sol
ou de chuva
precisa-se de vida-vida
as vidas estão vazias de vida
as relações estão sedentas por laços
os traços farejam insanos as formas

tudo tem andado meio sem
meio nada - vazio
Quem acordará para sonhar a realidade,
se o que mais se faz por esses dias é dormir?

Os velhos estão dormindo

Os jovens também.

29 de set. de 2010

pois então posso ver brotarem flores do asfalto
como quem sente mariposas farfalhando na barriga

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14 de ago. de 2010

estanque

estanque os versos quebrados
as palmas das mãos apertadas
os suspiros de espasmos
as palavras gentis
o silêncio guardado

estanque as vozes em sussurros
os apelos tão mudos
serenos gritantes do mundo

estanque o estar-se ao lado
o querer-se por perto
o calor dos olhares
o murmúrio exaltado de quem se deixou

estanque com destreza o passado
com seus rabiscos cortado e cortante
da dor maturada enervada e constante
do ébrio toque

estanque o decalque colado
a tatuagem bordada
o martírio do bêbado em cela fechada

e tão mais depressa se estanque
o pulsar do que há no peito
se estancará o sangue do sentir partido

e quem sabe então
se estancará a dor pungente
das incertas escolhas
e dos caminhos perdidos

num rito final estanque
o que existe aqui - e lá
para não se vagar no riso
da cruel ausência sarcástica

e tanto mais
para não se morrer de triste
na embriaguez do mundo
de sentimentos velados.

19 de jun. de 2010

A Glória

~
Muito de repente perdemos os cabelos, as cores, os dentes
Muito de repente dá-se conta de que se é
E se se é, vive-se.
Arranja-se com a cor dos lábios,
Negros, sedentos por carne,
Uma culpa mórbida de morto-vivo e dor
Zumbe ao escurecer lunar
De fome e apreço por seu próprio altar.

Patrícia Borde

~

15 de fev. de 2010

Pré-Março

Gotas fugidias salpicantes
Desamornam os cafés matutinos
Gélido frescor da aurora granizal
Acordo embebida no suor das desflores de outono
Pré-ou-tono.
Pós-ou-ton
Ou-tono de março
O Tom de março, Elis, terra e sal.

~
Minha foto
Viajante espacial da poética atemporal.

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