26 de nov. de 2011

Sábado de paz

Aqui na rua o dia é assim:
Tem criança que chora,
uns pais de família a papear.
De repente passa um garoto
de sandália de dedo, o peito nu,
a assobiar.
O pai grita:
"Entra pra casa garoto, olha a chuva!"
Mulheres, donas de casa, panelas, crianças, e marido,
fofocam das janelas vizinhas.
E uma mãe grita:
"Você vai apanhar, menino!"
Há também um rio que passa ao lado de casa
por debaixo da rua.
Ele é negro e sujo,
mas ainda assim tem som de rio.
Enquanto isso, aqui em casa
tudo anda calmo.
A vovó foi passear:
"Mas a senhora já vai sair, vó?"
"Me dá licença de eu sair pra bater um pouco de perna?"
E sai, com seus passos lentos
de pés cansados e bengala.
Casa vazia, a chuva caindo
ao som de Bob Dylan,
e eu sentada,
a ouvir o tique-taque do relógio
e a escrever estas memórias para o tempo
que não tarda nem se adianta.
Chega com sua pontual simplicidade
para me lembrar que hoje é sábado
e que eu nunca estive tão em paz.

27 de ago. de 2011

Da confusão entre a abertura e o banimento de si

Nunca podemos confundir a abertura ao outro com o banimento de si. Abrir-se ao novo requer antes de tudo uma postura ativa frente ao mundo, caso contrário, nos apagamos no outro, fenecemos, à medida que deixamos o outro nos nutrir, pois o ser passivo se dilui no outro, perdendo sua própria identidade. Ter uma identidade não se resume somente no discurso de pertencimento a esta ou àquela posição político-ideológica, significa afirmar-se como responsável pelos seus atos, pois estes sim dirão a que serviço se está no mundo. Ter uma identidade significa amar a si mesmo, sentir-se bem com sua própria companhia, ser capaz de se divertir sozinho, de refletir sobre si e sobre o mundo, não ter medo de compartilhar seus pensamentos e ter coerência em suas práticas. Só assim é possível amar ao outro e a ele entregar-se, sem que esta entrega signifique a perda ou a anulação de si.

6 de jul. de 2011

Pequeno conto inexistente

Eu poderia começar esta história com um “Era uma vez...”, porém, falo de uma história que nunca houve, porque sua protagonista sequer existiu, tendo ela sido, talvez, coadjuvante de sua própria história. A não-protagonista-mera-coadjuvante é Afásia. Mas ninguém quer Afásia. Nesta parábola Afásia vive um novo confronto: a inexistência. E a inexistência é a personagem central aqui.

Afasia deitara-se cedo, porque as olheiras lhe brotavam da face e seu corpo pesava, como se todo o lixo do mundo a houvesse atropelado. Não dormira na noite anterior, na verdade não dormia há uns três dias. Ela não dormia porque perdia-se todas as madrugadas no profundo silêncio do mundo e de si, em suas abstratas ambições, em sua poética rala e tosca, em seu viver de sonhos. Afásia aconchegara-se confortavelmente debaixo de suas cobertas e, como de costume, virou-se para o lado do relógio, como que a esperar que o tempo lhe trouxesse o sono naturalmente. Porém, aquilo não era natural, ela sabia que o sono não viria, porque quanto mais ela queria dormir, mas ela sofria, porque havia aquelas vozes que habitavam nela, que a remexiam e contorciam em seu leito. Aquele dia, no entanto, fora incomum, porque ao fixar seu olhar nos ponteiros do relógio, Afásia se deu conta de que perdera-se do tempo, ou melhor, perdera, de fato, o tempo. Não havia mais tique-taques, nem horas, nem minutos, nem os segundos e seus milésimos restaram. Era aquele o momento oportuno para livrar-se de tudo, para recompor-se, para recolher e colar seus cacos, seus trapos e sedas, suas chitas vagabundas, sua mediocridade. Afasia quedara-se silepsa, todos os seus esquemas para forjar discursos, inibir anseios, enterrar suas faltas, empoleiravam-se acima de si, como que esperando uma ordem para alçar vôo ao mundo real. Aquela era a chance de Afásia se explicar para o mundo, o tempo parado a sua frente, era o seu coringa para retornar à realidade. Porém, ela era cruel consigo, sabia que estar no mundo real não seria bom para as pessoas reais, que não mereciam conviver com alguém movido à pregos como Afásia, sem uma gota de sangue, sem uma gota de vida, sem um coração palpitante. Aquela era a chance de Afásia materializar-se, tornar-se gente de verdade, sorrir, cantar, aprender a lidar com o tempo. Já não era mais possível viver por trás das coxias, era preciso subir ao palco, fazer um número, arrancar aplausos da platéia efervescida. Mas Afásia não poderia. Ela não podia compreender o tempo, nem lidar com ele, porque para ela o tempo era o tique-taque do relógio, e sem o tique-taque, o tempo deixava de existir, como ela.

23 de jun. de 2011

Escuta!

Escuta!
tem alguém que lhe sopra os ouvidos
a cantarolar a suave vertigem dos prazeres.
Grita!
Desnuda o silêncio da tua língua,
Imposta a tua voz rebuscada de cacos
Serpenteia tua sorte no jogo de azar.
Escuta mais uma vez
O que digo
Não falo ao vento,
Mas a ti, soturno, elevo a voz.
Escuta, asno!
Escuta!
A reprimenda do teu sono
Ressoa tua morte
Se me escutasses, ao menos,
Correrias de tua sombra,
Mas andas sem nada a temer
E por isso cairás.
Escuta, suplico-te!
Para o bem da humanidade,
Joga fora o peso do mundo:
A fome, a lepra, a cegueira, o jogo, o sexo, a lama, o álcool, o trabalho, a tolice, a mesquinhez, o fumo, os falsos, a merda,
Larga tudo!
Vá embora, deixa a cada um o que o porvir lhe couber
Esquece teu sacrifício,
Não morre por ninguém
Desce de tua cruz
Volta à corja dos deuses.
Deixa-nos aqui com nossa humanidade.
Escuta, por favor, este suplício,
De quem não mais agüenta honrarias
Nem gratidões nem sacrifícios
Escuta!
Dança com os anjos a valsa dos deuses.
Esquece-nos aqui, a escrever poemas no lodo.
Deixa a coroa de espinhos conosco
Nós a destruiremos
Vai e diz a teu Pai,
Se é que o tens,
Que não há mais espera,
A dor dos homens já foi muita
A cólera tardou os ânimos, mas não os destruiu.
Escuta!
Escuta, pela última vez, minhas palavras:
Sobe, e finge que não nos conhece,
Porque o céu só quer aos limpos,
A humanidade quer a todos:
Pobres e bandidos e poetas e prostitutas e velhos e crianças e artistas e maltrapilhos e dançarinas e alcoólatras e loucos
e

9 de jun. de 2011

A tentativa de manter-me sempre inteira tem me tornado, quem sabe, estrangeira. Há um tempo, eu caía e me afundava no tombo; agora, caio, levanto e sigo como se nunca tivesse caído. Há uma mudança terrível aí. Parece que o rio da indiferença anda a banhar-me. Os gestos já não me tocam como antes, nem nada me arrepia tanto. Virei clandestina de mim mesma, de modo que não me importo mais a mim. As ações humanas me rodeiam e fico ali prostrada a contemplá-las como quem contempla uma paisagem. Não tenho palavras bonitas a dizer. Não quero dizer nada. Só me habita o silêncio. Não quero falar, muito menos pensar. E estão todos sempre a pedir-me uma opinião. Não quero emiti-la. Quero somente observar e perder o olhar num ponto de fuga, eximindo-me de qualquer culpa. Quem opina é responsável pelo que diz. Não quero responsabilidades. Basta-me existir assim, como todas as coisas existem, quietas e sorrateiras, sem grandes pretensões para o mundo. Sem memórias de desespero. Assim: uma reticência sentada num vale a contemplar o horizonte...

25 de mai. de 2011

A boniteza do dia

Há um tempo que as histórias de vida vêm sendo banalizadas, como se carregassem em suas costas um fardo que fosse mais grandioso que suas próprias narrativas. O fardo é a falta de tempo, a grande justificativa utilizada para engabelar o próprio existir. A escassez de tempo para as coisas simples é quase sinônimo de “preciso ganhar dinheiro”. E até quem não precisa ganhar dinheiro “precisa ganhar dinheiro”. E o pior: o tempo não pára, estamos morrendo a cada segundo, morrendo e ganhando dinheiro. Se a cada dia novas tecnologias estão sendo criadas, tornando obsoletas as de ontem, e demarcando um terreno de instabilidade e dúvida, também a cada dia crianças vêm ao mundo e, como já palavreou Guimarães Rosa, “quando um menino nasce, o mundo torna a começar. Aí reside a boniteza ao lado de uma crueldade: “o mundo torna a começar”a todo instante e não nos damos conta, porque somos nossos demais para ser do outro também, porque nosso umbigo é nosso mundo, e é um mundo que não torna a começar, porque está velho e cansado demais, e anda de carros-muletas-importados, ganha dinheiro e está morrendo. Mas o recém-nascido é o avesso da frieza, é a esperança, é o mundo brotando sereno e alegre, e nesse alvorecer da vida deveríamos nos banhar, tornando cada dia de nossa passagem pelo mundo, um novo afluente de rio, único e indispensável. Pergunte à maioria, “como são seus dias?” e terão como resposta: “são todos iguais, a rotina me mata”. E mata mesmo. Mata tanto que a acomodação é evidente nesses casos, a pura alma da morte. Às vezes acordo pela manhã me perguntando quanto de calma será necessária para que meu dia seja bonito. E caio em mim, percebendo que estou planejando o implanejável, ansiando por algo que está aquém de meus próprios anseios, pois somente a alma do instante poderá trazer a calma necessária à boniteza de um dia. E o instante é a vida que pulsa, é o corpo que cria, é o coração que sente. Não é previsível, mas inevitável. Tenho a impressão de que os fiéis seguidores de seus hábitos rotineiros só escaparão de suas amarras quando um dia, por um milagre da vida, descobrirem com seus olhares cabisbaixos, bem abaixo de seus umbigos, uma flor em explosão.

1 de mai. de 2011

O alimento

Não tenho mais onde montar esquemas
E nem por onde edificar bravuras
Não tenho mais onde cerzir costuras
E muito menos posso encomendar posturas

Simplesmente porque não sigo regras
Simplesmente porque não sou cinema
Porque componho catarses, sou paisagem
Porque promovo espasmos e corôo espaços

Por tudo e pelo menos não permito máscaras
Por tudo que o dia esconde no raio perdido de sol
Pelo menos que a lua brilhe n’outros astros, só
Poderei sorver meus gritos de centelha e nó

Para muito além do que vejo
Para trás e aquém do desejo
Noto o mundo em sua imediatez severa
Desperto muda em mim a embriaguez esmera

Não há como implodir os zombares de aspereza
Que nascem como espinhos a defender certezas
Mas há como fazer crescer entre as doenças
O brilho de olhar que é natureza transmutada

É nesse vai-e-vem supremo,
Transformar sereno, entornar meneios, destroçar de anseios
que o vento bate sorrateiro na paragem ausente
na imagem pungente do meu corpo inteiro

Apalpo imóvel a corrosão do tempo
Percebo pisque a pisque as rachaduras do meu ser ignóbil
Espremo, rouca, toda voz de dentro,
A rima, o cosmos e sua discórdia sinestésica

E sento, calma, inerte, em pausa
Para ver passar na rua o ambulante que grita “_Ambrosia!”
Ele me vende o alimento dos deuses:
A solidão, “_Afasia!”

19 de abr. de 2011

A filosofia da manhã

Não importa quem ou o quê sou,
Pois existo com as flores, as montanhas e os astros.
Saber de minha humanidade
Não me coloca acima deles
Só me faz entender que estamos sendo juntos
E que não há nada no mundo mais simples do que isso.

29 de mar. de 2011

Uma lágrima escorre de pesar.
Estar seco para o mundo parece o melhor a se fazer
Quando nada mais é natural como uma flor.
Cobrir-se com a natureza e estar menor que um grilo
Faz da vida mais leve
Porque serenidade também se constrói a partir do caos
E aprender a virtude da paciência é como estar entre deuses
Num corpo de mosquito.

14 de mar. de 2011

Ninguém melhor do que Caeiro
para me dizer de mim:


"Não tenho ambições nem desejos.
Ser poeta não é uma ambição minha.
É a minha maneira de estar sozinho."



Alberto Caeiro, no Guardador de Rebanhos, p. 17.

4 de mar. de 2011

a Março

Estou sempre a fazer poemas p`ra Março
Porque amo o jeito como Março chega
Vem com cheiro de chuva molhando a terra
Vem com frescor matinal que faz sorrir
Traz consigo o vento de pré-outono em tom de sépia
Que faz gracejo às saias rodadas das meninas
E carrega os chapéus dos moços desajeitados.
Eu gosto quando Março chega
Porque põe fim ao infernal calor de fevereiro,
Fazendo suar as nuvens,
E molhando com zelo nosso quintal.
Porque Março é de um verão ameno eu gosto
Porque é um tempo de amenidades e confortos,
Equilíbrio e mansidão
Aconchego, reflexão,
Eu gosto.
Eu adoro quando entra em Março
E me vem uma inspiração poética única
Da poesia de Março
Da nostalgia de Março
Da canção de Março
Das águas cristalinas de Março.
Eu vivo melhor em Março
Porque amanso a alma
Acalmo a mente
Refresco o corpo
Acordo.

Março se esvai e eu fico
Aqui a sonhar com o próximo Março
E brinco com as folhas secas caídas
Do outono que Março traz.

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Viajante espacial da poética atemporal.

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