9 de jul. de 2015

Tenho o cansaço

Tenho o cansaço das paredes
inerte, empalidecida, tenho
rasgos cicatrizes marcas
d'outras vidas

O assombro de antigos tempos:
adormecido
O vigor pelas manhãs:
não amanhece
Tantas tralhas
d'antes raras e propícias
agora, nada,
me enlouquecem

Nem os livros
sempre abismos abrigos contra
duradouras tempestades
presentemente são
muitos e vãos descabidos mundos
para uns olhos mudos que não podem ver

Aonde o broto verdejante?
Nas entranhas feridas cintilantes
esses brilhos de doença regozijam-se de
meu martírio

Que há de livre no uivar dos cães?
Que há dos ricos no
murmúrio balbuciante dos
indigentes?
Que há de vida  na poesia aflita que
congela presentes para
forjar partidas?
Que?

27 de fev. de 2015

Triste

Tem um tempo que não choro. E de repente dou a cara a tapa. E como que expulsa de um mar sereno e sem ondas, escorre uma lágrima. Uma tristeza que não batia desde o último outono. Rever castelos construídos que se liquidaram, ler versos d’outrora que hoje desconheço. Pareço ter vivido outra vida, mas cá estou com as lembranças mornas etéreas de paisagens duras de mim. Há uma leveza no encontro com outros tempos. Mas não sem dor é esse abraço. O peito palpita, vibra a carne trêmula, e a única gota a escorrer pela face já secou. Quantas flechas andei a lançar, de quantos abismos me vi a pular? Tijolo por tijolo, levantei paredes, rompi amarras, abri portas e me atirei de janelas. Mas nada é tão forte que dure para sempre. Tudo que foi pesado, hoje é poeira. Não há caminho aberto. Tudo está por abrir. Estar só é uma quimera que se aprende em companhia. Estar só é a possibilidade do encontro. Aonde todas as cores? Que fim levaram aqueles acordes primevos? As mãos tremem, o peito sangra, a pele se desfaz. Não sou mais que o capim inexistente na cidade, não tenho pretensão de lustre. Aprendo uma nota por vez, banho na lágrima seca as palavras outras das gentes que me fizeram, letra a letra, mística procissão. Tem um tempo que não choro. E mais que triste, é grande a invasão. Sou letras tortas, a erva daninha no vazio. Amontoado de nós e cacos, o escuro da noite perfurando a morada. Isto não é um desabafo. Isto não é uma dor. Quiçá seja um grito do corpo a mostrar pro que veio. Já disse, não tenho pretensão de lustre. De cristal, muito menos. Essas linhas trôpegas são mais um monte entrelinhas, a dizer o que não querem. A vida própria da linguagem me aniquilando. Quando chorarei novamente por uns versos tristes? Que os versos não sejam meus, e que a tristeza seja somente metáfora de uma luta por coragem. Aprender e cair, amar e sofrer, gozar e doer. Nada tão imenso quanto essa arrebatadora sorte que é estar viva, e poder, confiante, assumir na efemeridade do agora: estou triste. 

6 de out. de 2013

Escrever o que vem do fundo é sempre essa coisa meio trôpega, com ares de equilibrista em ponta do pé na corda bamba. A ilusão da realidade nos olhos que focam a sombra do apanhador de sonhos na parede branca. A formiga andarilha que nunca tarda a ressuscitar do ralo. O código de barras que finge ser matéria, coisa produzida, valorosa, mas não passa dumas tramas finas ralas grossas médias que abstraem as relações capitais, nada além de um meio pro fim selvagem da mercadoria. A verdade é que a escrivança não vem do fundo. Vem sempre de fora, desse mundo que tá aí pra jogo. O que muda é o jeito que se fala dessa coisa redonda com uns bons bilhões de seres e vidas e mortes. Vem do fundo sim. Vem não vem Vem. O certo é que o fora bate no fundo e fode tudo. Posso ladrar na madrugada quente dum inverno inexistente. Posso escorrer na garganta a cachaça de mel. Posso letra a letra, respiração forte, dedos pianos, compor uma ode ao cachorro da esquina da anistia, mal sabendo dedilhar um acorde notável. A gente põe a existência pra jogo quando entende que cada onda sonora, cada espectro de luz, cada gosto, cheiro e toque são o sagrado da vida.

15 de nov. de 2012

Há tempos sou incapaz de findar um poema


Há tempos sou incapaz de findar um poema
Eles ficam trôpegos, a vagar por aí inconclusos
Cheios de vida e
de repente:
Mortos,
sem saída.
Feito criança que pula brinca corre e tropeça no próprio passo
Eles são e não podem ser
Frágeis de nascimento
Fortes na caminhada
Correm por entre paredes e casas e sonhos
Mas nada
Não posso fazer com que se concluam
Inacabados como a vida
Adormecidos como a morte
São palavras e versos andarilhos
Que vagam sem rumo
Ressoam no asfalto
Encontram ou não corações baldios
e se esgotam

11 de jun. de 2012

Vontade de alma


Nunca há a certeza, mas a alma é um gozo enorme. Você nasce, pisca, cresce, ama, dilacera, sofre... Há gozo maior que tudo isso? Ainda sente a ternura que é viver o pôr-do-sol, a lua cheia, a brisa, o mar batendo sorrateiro suas ondas de espuma... Você escuta o arder do fogo, o suspiro do vento, o arranhar das entranhas, e ainda quer mais. Então eu lhe digo: tem flor que brota no asfalto e não se vê; para o amor humano há o silêncio universal, há o silêncio dos astros, os espaços de longitude e latitude onde nenhum tratado de tordesilhas dividiria, onde nenhum estrangeiro qualquer ousaria vestir a indumentária da superioridade. A natureza goza continuamente o que escondemos, o que nos envergonhamos, o que relutamos e movemos para as sombras do ínfimo. Mas a natureza goza, e isso é o que importa. Ela goza partilhas, serenos de madrugada, luzes de velas, orvalhos... ela goza tudo o que perdemos de vista. Não há amorosidade maior que a das montanhas perdidas nos horizontes de além-mar. E toda aquela explosão de chuva amarela, azul, laranja, sedenta de esperança verde, de futuro em broto, que é a madrugada. Sonhar cada amanhecer como sendo o único, cada florescer como o mais colorido, cada som como uma rajada de acordes celestiais, mais o gosto da água transcendente. Nunca há a certeza, mas a alma está tão próxima do abismo quanto a filosofia das coisas do mundo, aquela filosofia que se resume no gozo perpétuo, no parto das imensidões, na flor do fruto. Eu quero mais do dia do que posso sentir, eu quero mais alma do que posso ser, mais efemeridade nos meus quintais, porque vida não se resume a versos ou canções. Eu quero ser mais abismo que sonhos, mais madrugada que raios, mais explosões que anseios. Porque a alma, inevitavelmente, é um gozo enorme. E somos todos a prole desse gozo.

8 de mai. de 2012

Pre-gui-çar:

Verbo que pinga
Gota por gota, bocejo por bocejo
E dorme de brincar
Ando preguiçando estrelas no meu quarto de sonhar
Bugigangas me preguiçam muito
Hoje preguicei de tanto pingar is
Preguiçar é verbo que caminha lento
Não faz parte do léxico dos apressados
Eu preguiço tanto que não sei pisar: flutuo
Largo por aí rastros de dengo-preguiça
Cafés me des-preguiçam logo
Chocolates perfuram ninares
Coração enguiça, e paro
Obsoleta à moda da casa
Descasco, sofrendo, cebolas e cacos
Preguiçam sobre mim umas sombras de fora
Há os preguiçantes da madrugada a preguiçar pela rua
Eu vi meu reflexo no espelho
Ele tem cor de preguiça
Ele tem cor de morango
Gôsto de dias nublados
Ele tem cor de mim

27 de mar. de 2012

Poema pro Março costumeiro

Este Março queria passar
Sem que eu lhe notasse
Mas como de costume,
Não posso deixar de entoar-lhe
Minha humilde ode

Mais um Março se vai
Puro peixe que sou,
Faço juz a meu
Mar
ço só
nado por entre corais
busco meus ancestrais
que a terra levou
e o Mar consagrou
em mim

durmo a sentir dolorir
o sonho que o mar delegou
clamo ao Março,
morMaço de mim,
que a luz incendeie
meu corpo com ardor

Março me passa
Sem Elis, nem Tom
Nem Cachaça
Março só-corre
O meu tempo é que é sorte

Espreita o outono na janela de Março
Bate na porta um ventinho
Frescal
Cobre de versos a minha alvorada
E faz sol.

18 de mar. de 2012

La tierra giró para acercarnos

La tierra giró para acercarnos,
giró sobre sí misma y en nosotros,
hasta juntarnos por fin en este sueño,
como fue escrito en el Simposio.
Pasaron noches, nieves y solsticios;
pasó el tiempo en minutos y milenios.
Una carreta que iba para Nínive
llegó a Nebraska.
Un gallo cantó lejos del mundo,
en la previda a menos mil de nuestros padres.
La tierra giró musicalmente
llevándonos a bordo;
no cesó de girar un solo instante,
como si tanto amor, tanto milagro
sólo fuera un adagio hace mucho ya escrito
entre las partituras del Simposio.

Eugenio Montejo

24 de jan. de 2012

Chuva de desprezo


A chuva de pedra que cai por aí
Mata nossos homens, nossas mulheres e filhos
Enchente de rios de gente
Lama de sonhos frustrados
Tetos que vão abaixo
Lares que se calam

Mas o amor permanece
Quem fica chora pelos que foram
Força não falta na lágrima que cai
Do velho que perde o neto
Do moço que perde a amada
Da mobília toda molhada que já não presta mais

Mas o amor permanece
Mesmo sabendo que todo janeiro é assim
As águas do verão a pôr abaixo tanto coração
Tanto tijolo, tanto cimento,
Deixa solidão gritar ao vento
Que os seus entes perdidos
Foram queridos anônimos
Que a terra pôs-se a engolir

Mas o amor permanece
Ainda não havendo medidas
Que poderiam ser preventivas
Mesmo com tanto político
A representar com ternos cheios de esmero
Contas bancárias de notas
Promessas inchadas de desprezo,
Eles esperam:
A contenção das encostas sofridas
A construção de casas-abrigos
O pagamento da bolsa-morada
O retorno à mesa em família

Mas o amor permanece
Ausente de mesa ou de família.
Porque nossos homens não voltarão
Nem as mulheres os filhos ou netos
Somente as lembranças que deles nos restam
Tampam o buraco da dor

Para as autoridades,
Ministério da Integração Nacional
ou das Cidades, porém,
O buraco não é tão fundo
E não há amor que permaneça
Em suas seguras mansões de vidro,
Pensam mórbidos, vencidos:
“Agora que não têm mais família,
Aqueles pobres mendigos,
Pra quê precisarão de casas?
Bastam-lhes os abrigos”.

10/01/2012

26 de nov. de 2011

Sábado de paz

Aqui na rua o dia é assim:
Tem criança que chora,
uns pais de família a papear.
De repente passa um garoto
de sandália de dedo, o peito nu,
a assobiar.
O pai grita:
"Entra pra casa garoto, olha a chuva!"
Mulheres, donas de casa, panelas, crianças, e marido,
fofocam das janelas vizinhas.
E uma mãe grita:
"Você vai apanhar, menino!"
Há também um rio que passa ao lado de casa
por debaixo da rua.
Ele é negro e sujo,
mas ainda assim tem som de rio.
Enquanto isso, aqui em casa
tudo anda calmo.
A vovó foi passear:
"Mas a senhora já vai sair, vó?"
"Me dá licença de eu sair pra bater um pouco de perna?"
E sai, com seus passos lentos
de pés cansados e bengala.
Casa vazia, a chuva caindo
ao som de Bob Dylan,
e eu sentada,
a ouvir o tique-taque do relógio
e a escrever estas memórias para o tempo
que não tarda nem se adianta.
Chega com sua pontual simplicidade
para me lembrar que hoje é sábado
e que eu nunca estive tão em paz.

27 de ago. de 2011

Da confusão entre a abertura e o banimento de si

Nunca podemos confundir a abertura ao outro com o banimento de si. Abrir-se ao novo requer antes de tudo uma postura ativa frente ao mundo, caso contrário, nos apagamos no outro, fenecemos, à medida que deixamos o outro nos nutrir, pois o ser passivo se dilui no outro, perdendo sua própria identidade. Ter uma identidade não se resume somente no discurso de pertencimento a esta ou àquela posição político-ideológica, significa afirmar-se como responsável pelos seus atos, pois estes sim dirão a que serviço se está no mundo. Ter uma identidade significa amar a si mesmo, sentir-se bem com sua própria companhia, ser capaz de se divertir sozinho, de refletir sobre si e sobre o mundo, não ter medo de compartilhar seus pensamentos e ter coerência em suas práticas. Só assim é possível amar ao outro e a ele entregar-se, sem que esta entrega signifique a perda ou a anulação de si.

6 de jul. de 2011

Pequeno conto inexistente

Eu poderia começar esta história com um “Era uma vez...”, porém, falo de uma história que nunca houve, porque sua protagonista sequer existiu, tendo ela sido, talvez, coadjuvante de sua própria história. A não-protagonista-mera-coadjuvante é Afásia. Mas ninguém quer Afásia. Nesta parábola Afásia vive um novo confronto: a inexistência. E a inexistência é a personagem central aqui.

Afasia deitara-se cedo, porque as olheiras lhe brotavam da face e seu corpo pesava, como se todo o lixo do mundo a houvesse atropelado. Não dormira na noite anterior, na verdade não dormia há uns três dias. Ela não dormia porque perdia-se todas as madrugadas no profundo silêncio do mundo e de si, em suas abstratas ambições, em sua poética rala e tosca, em seu viver de sonhos. Afásia aconchegara-se confortavelmente debaixo de suas cobertas e, como de costume, virou-se para o lado do relógio, como que a esperar que o tempo lhe trouxesse o sono naturalmente. Porém, aquilo não era natural, ela sabia que o sono não viria, porque quanto mais ela queria dormir, mas ela sofria, porque havia aquelas vozes que habitavam nela, que a remexiam e contorciam em seu leito. Aquele dia, no entanto, fora incomum, porque ao fixar seu olhar nos ponteiros do relógio, Afásia se deu conta de que perdera-se do tempo, ou melhor, perdera, de fato, o tempo. Não havia mais tique-taques, nem horas, nem minutos, nem os segundos e seus milésimos restaram. Era aquele o momento oportuno para livrar-se de tudo, para recompor-se, para recolher e colar seus cacos, seus trapos e sedas, suas chitas vagabundas, sua mediocridade. Afasia quedara-se silepsa, todos os seus esquemas para forjar discursos, inibir anseios, enterrar suas faltas, empoleiravam-se acima de si, como que esperando uma ordem para alçar vôo ao mundo real. Aquela era a chance de Afásia se explicar para o mundo, o tempo parado a sua frente, era o seu coringa para retornar à realidade. Porém, ela era cruel consigo, sabia que estar no mundo real não seria bom para as pessoas reais, que não mereciam conviver com alguém movido à pregos como Afásia, sem uma gota de sangue, sem uma gota de vida, sem um coração palpitante. Aquela era a chance de Afásia materializar-se, tornar-se gente de verdade, sorrir, cantar, aprender a lidar com o tempo. Já não era mais possível viver por trás das coxias, era preciso subir ao palco, fazer um número, arrancar aplausos da platéia efervescida. Mas Afásia não poderia. Ela não podia compreender o tempo, nem lidar com ele, porque para ela o tempo era o tique-taque do relógio, e sem o tique-taque, o tempo deixava de existir, como ela.

23 de jun. de 2011

Escuta!

Escuta!
tem alguém que lhe sopra os ouvidos
a cantarolar a suave vertigem dos prazeres.
Grita!
Desnuda o silêncio da tua língua,
Imposta a tua voz rebuscada de cacos
Serpenteia tua sorte no jogo de azar.
Escuta mais uma vez
O que digo
Não falo ao vento,
Mas a ti, soturno, elevo a voz.
Escuta, asno!
Escuta!
A reprimenda do teu sono
Ressoa tua morte
Se me escutasses, ao menos,
Correrias de tua sombra,
Mas andas sem nada a temer
E por isso cairás.
Escuta, suplico-te!
Para o bem da humanidade,
Joga fora o peso do mundo:
A fome, a lepra, a cegueira, o jogo, o sexo, a lama, o álcool, o trabalho, a tolice, a mesquinhez, o fumo, os falsos, a merda,
Larga tudo!
Vá embora, deixa a cada um o que o porvir lhe couber
Esquece teu sacrifício,
Não morre por ninguém
Desce de tua cruz
Volta à corja dos deuses.
Deixa-nos aqui com nossa humanidade.
Escuta, por favor, este suplício,
De quem não mais agüenta honrarias
Nem gratidões nem sacrifícios
Escuta!
Dança com os anjos a valsa dos deuses.
Esquece-nos aqui, a escrever poemas no lodo.
Deixa a coroa de espinhos conosco
Nós a destruiremos
Vai e diz a teu Pai,
Se é que o tens,
Que não há mais espera,
A dor dos homens já foi muita
A cólera tardou os ânimos, mas não os destruiu.
Escuta!
Escuta, pela última vez, minhas palavras:
Sobe, e finge que não nos conhece,
Porque o céu só quer aos limpos,
A humanidade quer a todos:
Pobres e bandidos e poetas e prostitutas e velhos e crianças e artistas e maltrapilhos e dançarinas e alcoólatras e loucos
e

9 de jun. de 2011

A tentativa de manter-me sempre inteira tem me tornado, quem sabe, estrangeira. Há um tempo, eu caía e me afundava no tombo; agora, caio, levanto e sigo como se nunca tivesse caído. Há uma mudança terrível aí. Parece que o rio da indiferença anda a banhar-me. Os gestos já não me tocam como antes, nem nada me arrepia tanto. Virei clandestina de mim mesma, de modo que não me importo mais a mim. As ações humanas me rodeiam e fico ali prostrada a contemplá-las como quem contempla uma paisagem. Não tenho palavras bonitas a dizer. Não quero dizer nada. Só me habita o silêncio. Não quero falar, muito menos pensar. E estão todos sempre a pedir-me uma opinião. Não quero emiti-la. Quero somente observar e perder o olhar num ponto de fuga, eximindo-me de qualquer culpa. Quem opina é responsável pelo que diz. Não quero responsabilidades. Basta-me existir assim, como todas as coisas existem, quietas e sorrateiras, sem grandes pretensões para o mundo. Sem memórias de desespero. Assim: uma reticência sentada num vale a contemplar o horizonte...

25 de mai. de 2011

A boniteza do dia

Há um tempo que as histórias de vida vêm sendo banalizadas, como se carregassem em suas costas um fardo que fosse mais grandioso que suas próprias narrativas. O fardo é a falta de tempo, a grande justificativa utilizada para engabelar o próprio existir. A escassez de tempo para as coisas simples é quase sinônimo de “preciso ganhar dinheiro”. E até quem não precisa ganhar dinheiro “precisa ganhar dinheiro”. E o pior: o tempo não pára, estamos morrendo a cada segundo, morrendo e ganhando dinheiro. Se a cada dia novas tecnologias estão sendo criadas, tornando obsoletas as de ontem, e demarcando um terreno de instabilidade e dúvida, também a cada dia crianças vêm ao mundo e, como já palavreou Guimarães Rosa, “quando um menino nasce, o mundo torna a começar. Aí reside a boniteza ao lado de uma crueldade: “o mundo torna a começar”a todo instante e não nos damos conta, porque somos nossos demais para ser do outro também, porque nosso umbigo é nosso mundo, e é um mundo que não torna a começar, porque está velho e cansado demais, e anda de carros-muletas-importados, ganha dinheiro e está morrendo. Mas o recém-nascido é o avesso da frieza, é a esperança, é o mundo brotando sereno e alegre, e nesse alvorecer da vida deveríamos nos banhar, tornando cada dia de nossa passagem pelo mundo, um novo afluente de rio, único e indispensável. Pergunte à maioria, “como são seus dias?” e terão como resposta: “são todos iguais, a rotina me mata”. E mata mesmo. Mata tanto que a acomodação é evidente nesses casos, a pura alma da morte. Às vezes acordo pela manhã me perguntando quanto de calma será necessária para que meu dia seja bonito. E caio em mim, percebendo que estou planejando o implanejável, ansiando por algo que está aquém de meus próprios anseios, pois somente a alma do instante poderá trazer a calma necessária à boniteza de um dia. E o instante é a vida que pulsa, é o corpo que cria, é o coração que sente. Não é previsível, mas inevitável. Tenho a impressão de que os fiéis seguidores de seus hábitos rotineiros só escaparão de suas amarras quando um dia, por um milagre da vida, descobrirem com seus olhares cabisbaixos, bem abaixo de seus umbigos, uma flor em explosão.

1 de mai. de 2011

O alimento

Não tenho mais onde montar esquemas
E nem por onde edificar bravuras
Não tenho mais onde cerzir costuras
E muito menos posso encomendar posturas

Simplesmente porque não sigo regras
Simplesmente porque não sou cinema
Porque componho catarses, sou paisagem
Porque promovo espasmos e corôo espaços

Por tudo e pelo menos não permito máscaras
Por tudo que o dia esconde no raio perdido de sol
Pelo menos que a lua brilhe n’outros astros, só
Poderei sorver meus gritos de centelha e nó

Para muito além do que vejo
Para trás e aquém do desejo
Noto o mundo em sua imediatez severa
Desperto muda em mim a embriaguez esmera

Não há como implodir os zombares de aspereza
Que nascem como espinhos a defender certezas
Mas há como fazer crescer entre as doenças
O brilho de olhar que é natureza transmutada

É nesse vai-e-vem supremo,
Transformar sereno, entornar meneios, destroçar de anseios
que o vento bate sorrateiro na paragem ausente
na imagem pungente do meu corpo inteiro

Apalpo imóvel a corrosão do tempo
Percebo pisque a pisque as rachaduras do meu ser ignóbil
Espremo, rouca, toda voz de dentro,
A rima, o cosmos e sua discórdia sinestésica

E sento, calma, inerte, em pausa
Para ver passar na rua o ambulante que grita “_Ambrosia!”
Ele me vende o alimento dos deuses:
A solidão, “_Afasia!”

19 de abr. de 2011

A filosofia da manhã

Não importa quem ou o quê sou,
Pois existo com as flores, as montanhas e os astros.
Saber de minha humanidade
Não me coloca acima deles
Só me faz entender que estamos sendo juntos
E que não há nada no mundo mais simples do que isso.

29 de mar. de 2011

Uma lágrima escorre de pesar.
Estar seco para o mundo parece o melhor a se fazer
Quando nada mais é natural como uma flor.
Cobrir-se com a natureza e estar menor que um grilo
Faz da vida mais leve
Porque serenidade também se constrói a partir do caos
E aprender a virtude da paciência é como estar entre deuses
Num corpo de mosquito.

14 de mar. de 2011

Ninguém melhor do que Caeiro
para me dizer de mim:


"Não tenho ambições nem desejos.
Ser poeta não é uma ambição minha.
É a minha maneira de estar sozinho."



Alberto Caeiro, no Guardador de Rebanhos, p. 17.

4 de mar. de 2011

a Março

Estou sempre a fazer poemas p`ra Março
Porque amo o jeito como Março chega
Vem com cheiro de chuva molhando a terra
Vem com frescor matinal que faz sorrir
Traz consigo o vento de pré-outono em tom de sépia
Que faz gracejo às saias rodadas das meninas
E carrega os chapéus dos moços desajeitados.
Eu gosto quando Março chega
Porque põe fim ao infernal calor de fevereiro,
Fazendo suar as nuvens,
E molhando com zelo nosso quintal.
Porque Março é de um verão ameno eu gosto
Porque é um tempo de amenidades e confortos,
Equilíbrio e mansidão
Aconchego, reflexão,
Eu gosto.
Eu adoro quando entra em Março
E me vem uma inspiração poética única
Da poesia de Março
Da nostalgia de Março
Da canção de Março
Das águas cristalinas de Março.
Eu vivo melhor em Março
Porque amanso a alma
Acalmo a mente
Refresco o corpo
Acordo.

Março se esvai e eu fico
Aqui a sonhar com o próximo Março
E brinco com as folhas secas caídas
Do outono que Março traz.

.

26 de dez. de 2010

Fantasia

Naufraguei num deserto de deuses, perdida entre duendes, à sombra de um baobá.

Ode ao nada

Estou tão perto de conhecer o nada como estive tão perto de conhecer o tudo, mas ele me passou para trás. E agora o nada vem a soar em meus ouvidos, odorizar minhas narinas, sacudir meus anseios e entoar palavras de minhas cordas vocais. Serei eu uma exaltadora do nada, neste mundo do tudo, onde todos se sentem como o todo e o exaltam, onde a correria diária eleva os seres ativos, que tudo fazem, onde mais e mais coisas inúteis são criadas para satisfazer desejos fúteis?

O nada é mais límpido e mais calmo. Ele clarifica o pensamento, permite novas suposições, glorifica as simplicidades. O nada é tão sereno quanto uma bolha, náufraga de seu todo, uma parte vazia e ao mesmo tempo completa do nada.

_

6 de dez. de 2010

Do sentir miúdo

Não sou, confesso,
a que hoje morre de dor,
mas ela está sempre aqui,
adormecida, acho.

Por vezes esqueço qu'ela existe,
e passo.

29 de nov. de 2010

Poesia do Luto

Gente pobre morre tanto
Gente honesta, traficante
Morre homem da favela
e criança sem tutela.

Onde há vida há amor
E com a gente dos barracos
Só lhes mandam os carrascos
A enquadrar o seu suor,
Gotas de sangue, nó.

O negro que um dia embarcou
No navio da tormenta
Serviu, lutou, gritou
E ainda dele se alimentam.

Vejo caos e agonia
Boatos, mentiras, conspirações no ar.
Todos olham as imagens diárias
em suas TV`s imaginárias.
Limpam a gente rica da sujeira
Culpam o pobre: é marginal.

Farinha pouca, meu pirão primeiro.
Para os donos do poder,
Todo cuidado é pouco.
A merda é grande,
Mas o bolso deles também.
Enquanto o pobre pisa no lodo e morre,
Gente das posses encobre o lixo e dorme.

Até onde vai isso impune?
Num mundo de moços “bons”, bandidos “maus”,
Maniqueísmos, fantasias e jornais,
Escondem a verdadeira face humana:

Quem muito tem, nada quer dar
Ou seu lucro pôr a perder.
Quem pouco ou nada tem,
Carece de amparo e de justiça.
É pobre bandido,
Muleque pivete,
Garota da vida.

Uma minoria apossada gera os marginalismos
A classe média vai na onda.
Consomem a ilegalidade,
Tiram leite de criança
E ainda vêm fazer alarde
Vitimizando a própria “inocência”.

E para onde vai o criminoso?
Para as jaulas do poder.
Enquanto ouço dizer
“Tire os bons da favela, e jogue uma bomba lá”
Mais tenho certeza da pequenez humana,
Do quanto precisamos ser melhores e mais justos,
Antes que matemos uns aos outros
E degolemos nossos próprios filhos.

---

22 de nov. de 2010

Açoite

Aquela criança, recém vinda ao mundo
sacolejava nos braços maternos.
Fruto de toda asquerosidade do mundo
ou de todo amor, não se sabe,
era o ser mais puro, indefeso a sorrir.

O seu rosto já marcado
pela cólera do porvir.
Seu regalo era um colo cansado
de quem mal pariu.

Nas entranhas, o gosto amargo das ruas,
o suor, molhado de sede.
a grande barriga, vazia de comida.

Tudo tão grandioso e tão feio
Tudo tão belo e tão sujo.
Por quanto de dinheiro se vende o medo?
Com quanto suor se compra a sobrevida?

O existir tão perto da morte e tão longe da vida.

--

19 de out. de 2010

Vida-vida

Precisa-se de mais vida nas vidas
de mais cor nas cores
de menos dor nas dores.

Precisa-se de mais lar nos lares
de menos fala nas falas
de mais agir nas práticas.

Para se acordar cedo nos dias de sol
ou de chuva
precisa-se de vida-vida
as vidas estão vazias de vida
as relações estão sedentas por laços
os traços farejam insanos as formas

tudo tem andado meio sem
meio nada - vazio
Quem acordará para sonhar a realidade,
se o que mais se faz por esses dias é dormir?

Os velhos estão dormindo

Os jovens também.

29 de set. de 2010

pois então posso ver brotarem flores do asfalto
como quem sente mariposas farfalhando na barriga

-

14 de ago. de 2010

estanque

estanque os versos quebrados
as palmas das mãos apertadas
os suspiros de espasmos
as palavras gentis
o silêncio guardado

estanque as vozes em sussurros
os apelos tão mudos
serenos gritantes do mundo

estanque o estar-se ao lado
o querer-se por perto
o calor dos olhares
o murmúrio exaltado de quem se deixou

estanque com destreza o passado
com seus rabiscos cortado e cortante
da dor maturada enervada e constante
do ébrio toque

estanque o decalque colado
a tatuagem bordada
o martírio do bêbado em cela fechada

e tão mais depressa se estanque
o pulsar do que há no peito
se estancará o sangue do sentir partido

e quem sabe então
se estancará a dor pungente
das incertas escolhas
e dos caminhos perdidos

num rito final estanque
o que existe aqui - e lá
para não se vagar no riso
da cruel ausência sarcástica

e tanto mais
para não se morrer de triste
na embriaguez do mundo
de sentimentos velados.

19 de jun. de 2010

A Glória

~
Muito de repente perdemos os cabelos, as cores, os dentes
Muito de repente dá-se conta de que se é
E se se é, vive-se.
Arranja-se com a cor dos lábios,
Negros, sedentos por carne,
Uma culpa mórbida de morto-vivo e dor
Zumbe ao escurecer lunar
De fome e apreço por seu próprio altar.

Patrícia Borde

~
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Viajante espacial da poética atemporal.

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